Meus passos foram ágeis e firmes, e consegui passar pela porta antes que o motorista do ônibus a fechasse. Aquele dia estava frio, mas frio de um jeito gostoso, aconchegante. As pessoas estavam bonitas, mais alegres, típico no sul. Encostei-me contra a porta e relaxei, minha respiração ficou levemente ofegante, mas logo eu me acalmei. O fone estava alto no meu ouvido, mas a música era prazerosa, me distraia e criava um sentimento longe de ser nostálgico. Fitei ponta a ponta do ônibus novamente, e de repente um choque visual me amorteceu.
 
Ela estava a minha frente, me encarando com um olhar profundo. Cai de cabeça naquele mar esverdeado, claro e pulsante, eu estava hipnotizado. Flagrei alguns fios de seu cabelo dourado voando sobre seus cílios e me distrai deixando meus olhos me guiarem até seus lábios, carnudos, avermelhados, convidativos. Seu nariz era bonito e suas bochechas rosadas, a pele parecia macia, e meu coração disparou.
 
Por alguns segundos, nós travamos, um no outro, e quando nos demos conta, aquilo pareceu embaraçoso e nossos olhares se desgrudaram, perdendo-se no ambiente. Eu tentava evitar, mas a cada movimento, eu me sentia forçado a observá-la, senti vontade de desenhá-la, escrevê-la, de tocá-la, meu lado artístico ressoou de formar indescritível, e uma inspiração me abraçou. Notei que ela se esforçava para não me encarar, mas em momento de distração e pensamentos aleatórios, eu a pegava, de canto de olho, me observando, estudando, desejando.
 
Ela disfarçou bem. Puxou um livro de dentro da bolsa, e se pôs a ler, mas não antes de me encarar novamente. O livro possuía belas ilustrações na capa e contra capa, de um título ligeiramente familiar A Última Quimera, um título chamativo, poético. Passamos mais alguns minutos naquele jogo de encontros e desencontros de olhares, nas idas e vindas da sua atenção sobre aquelas páginas, mas aquilo não durou muito, nos aproximávamos do terminal, e toda aquela admiração, aquela paixão secreta que fervilhou em nossos corações, por um momento tão repentino e breve, estava para ser apagada, cada um seguiria seu rumo, e as palavras que poderiam ser trocas, e nunca existiram, não teriam chance alguma de existir, de uma vez por todas.
 
Fitei-a enquanto ela puxou a página anterior a que estava lendo e a dobrou. Um sentimento oportuno me contaminou. Foi minha chance, foi um convite, não poderia ser ao acaso, não poderia ser coincidência. Ela se levantou, preparada para desembarcar, e logo mais pessoas vieram próximo a mim, bloqueando minha visão a aquela sedutora desconhecida. Olhei para todos, tentei compreender aquele momento, tentei imaginar se aquilo era o que chamavam de destino, e se a escolha que eu iria fazer, era uma das entrelinhas que preenchem o que chama de vida, eu só tinha dois caminhos a trilhar, tornar aquele momento algo apenas para eu guardar, continuar sendo uma pessoa simples, cuidadosa com si mesma, reservada ao seu próprio mundo, ou viver o que a vida me dispôs.
 
Avancei, passando por uma, duas pessoas, e logo eu estava ao lado dela. Senti o cheiro do seu perfume, meus olhos brilharam com a proximidade que dividíamos, e então ela me encarou. Meu coração apertou e algo me deixou brevemente sem reação. Esbocei um sorriso encabulado e levei a mão direita ao bolso de trás.

- Me desculpe a ousadia - tomei sua atenção por completo -, mas isto é para que você não precise mais dobrar as páginas do livro - completei puxando do bolso um cartão de visita que costumava entregar aos clientes das minhas artes.

- Ah! Obrigada! - Ela respondeu em um tom delicado, sua voz era doce, ela sorriu e um sentimento bom se aconchegou no meu interior. Observei-a saindo pela porta, pensando que um dia, talvez acontecesse de nos vermos novamente, e quem sabe aquilo poderia ser a oportunidade para conversarmos. Ela parou a alguns metros da porta e ficou observando o cartão. O ônibus ficou parado, o motorista estava adiantado.

Encostei-me contra a janela, me distrai da mulher e dei atenção ao meu mp3, pois naquele momento a música havia mudado, e um som inspirador e rico em sentimentos ecoou pelo fone e desvirtuou minha mente. A imagem da mulher estava fresca, então fechei os olhos para observá-la novamente, admirá-la, pude até sentir seu cheiro e logo me dei conta de que o cheiro estava próximo, o cheiro estava a minha frente. Abri os olhos, e a imagem daquela bela mulher não se desfez. Ela se aproximou, e o tempo ficou mais lento, levou suas mãos sobre meu peito e seus lábios encontraram os meus. Um beijo intenso, perfeito e estranho.
 
Ela se afastou, sem dizer palavra alguma, deu as costas e seguiu seu caminho. A porta se fechou e eu fiquei ali, imóvel e com o êxtase daquele momento. Foi filosófico, poético, foi real e eu entendi, interpretei. Aquele beijo não foi o acaso, não foi nem o destino, foi um fato, o fato de que ambos desejávamos aquilo. Eu sabia que na mente dela, aqueles pensamentos também se instalaram, aquele beijo teve que acontecer, ele poderia ser o melhor beijo de nossas vidas, poderia ser o beijo mais memorável, poderia ter criado o momento que ficaria para sempre em nossas mentes, poderia ser o início de um sentimento maior, o início de uma amizade, o início de um lance, ele poderia linkar nossas vidas, ou simplesmente ser um beijo único e nada mais, mas de uma coisa nós dois certamente tínhamos certeza... Aquele beijo foi real.