Abril, 2025

Sob a mesa

contos 📖

Esse texto foi originalmente publicado no Tumblr em 2019.


A charrete parou, e um leve solavanco arrancou-me brutalmente dos meus devaneios. Ouvi algumas vozes ao redor, nenhuma familiar.

 — Chegamos, senhor! — Comentou François, enquanto relaxava as mãos cansada das rédeas.

Inclinei-me, respondendo ao mordomo que abrira a porta da charrete. Desci os degraus com a mente atordoada, uma sutil emoção aflorada, estava ansioso e não sabia o que esperar. O mordomo, por sua vez, cobriu-me, postando-se ao meu lado, então notei que uma chuva mediana despencava dos céus enegrecidos. Levei a mão para o lado, sob a chuva e senti as gotas se chocando leves contra minha pele. Encarei o mordomo.

— Sou Perrin, senhor — apresentou-se. — A família Laurent o aguarda.

— Todos os convidados já chegaram?

— Sim, senhor. O último, antes do senhor, chegou a aproximadamente meia hora.

— Eu me atrasei, terei que me desculpar com seu senhoril — comentei encabulado pelo atraso.

— Não há necessidade, senhor. O Sr. Laurent deu ordens claras à todos os empregados e fez um pedido cortês para que todos compreendessem que a chuva poderia atrasá-lo, senhor.

— Bom, se é assim, melhor entrarmos — Perrin concordou com um gesto de cabeça.

A fachada do castelo dos Laurent era vistosa, uma construção de arquitetura impecável, datando mais de cinco gerações de existência. Caminhei vagarosamente em direção as escadarias, enquanto outro mordomo recolhia minha mala de dentro da charrete. Observei o arco em ogiva que preenchia a vista por metros sobre uma grande porta de madeira negra. A pouca luz que provinha das tochas protegidas dava uma perspectiva sombria ao iluminar regiões diferentes a cada momento com o movimento das chamas ao vento. Por todo o arco haviam símbolos antigos, de outra era, esculpidas haviam imagens de criaturas e heróis.

Subi as escadas, ficando sob a proteção do arco, o mordomo avançou, notei que a chuva engrossara um pouco, as nuvens carregadas se amontoavam no céu, a noite seria longa.

A porta de madeira se abriu, Perrin indicou-me o caminho. Adentrei ao salão de recepção, maravilhando-me com a vista. Pilares majestosamente trabalhados e imensos, respeitando a estrutura alta e poderosa dos castelos da região. Grandes quadros preenchiam as paredes e uma quantidade surpreendente de janelas transpareciam os relâmpagos que estouravam do lado de fora. Muitos candelabros descansavam em pontos estratégicos, distribuindo de forma mais dinâmica a luz pelo raio de visão. Caminhei com Perrin atravessando o salão, o piso possuía pinturas magníficas, quase abstratas, meus olhos se enchiam com tamanha beleza.

— Sr. Laurent comentou que você nunca visitou estas terras.

— Sim, Sr. Laurent é muito conhecido, mesmo em minha terra natal. Mas antes deste convite, eu não tivera oportunidade de viajar até aqui — respondi ao comentário do mordomo.

— Você já o conhecera? — Questionou ele.

— Não, mas ouvi falar de suas experiências, de suas filhas, e… — Dei uma breve pausa engolindo as palavras que iriam vir à seguir.

— E o quê? — Perrin notou que algo mais seria dito, então reforçou. — Os rumores sobre costumes estranhos na família Laurent?

Encarei o mordomo, sem saber o que dizer.

— Me desculpe — foi tudo o que consegui.

— Não se preocupe, são apenas rumores. Sr. Laurent é um grande médico, conhecido sim por seu conhecimento vasto de anatomia, o que é algo incomum e estranho para pessoas comuns, não acha? Abrir corpos — disse ele com um tom grave. — Ah e também pela beleza esfíngica de suas amáveis filhas — completou. — Soube que você já conhecera Elizabeth. — Meu coração acelerou, a imagem de uma ninfa deslumbrante explodiu em minha mente, Elizabeth, aquele nome.

Conforme caminhávamos até o salão onde haveria o jantar, a luz do salão onde estávamos diminuía.

— Eu… Eu, estudei algum tempo com ela na universidade, dividimos algumas matérias de psicologia.

— Entendo — resmungou ele. — Chegamos, senhor. — Finalizou.

Perrin apressou-se alguns passos e colou à porta, sem cerimônias, puxou-a e um feixe de luz se destacou, aumentando gradualmente. Curioso, me inclinei de leve, levando a cabeça um pouco mais espiando pela fresta que aumentava. Flagrei uma mesa repleta de talheres e porcelanas, candelabros vistosos e taças de cristal. Alguns empregados passando para lá e pra cá com garrafas de vinho e uísque. Então alguns rostos ficaram visíveis. Logo a porta toda se abriu e a falação e gargalhadas se transformaram em burburinhos e cochichos, todos me olharam. O mordomo passou ao meu lado e aproximou-se da mesa.

— Sr. Laurent, senhoras e senhores, Vincent Lefevre — apresentou-me.

Me aproximei da mesa com passos curtos. Haviam aproximadamente trinta pessoas envolto à mesa, esta em formato retangular se esticava por alguns metros, até próximo a uma grande janela preenchida de mosaicos com gravuras medievais, notei que as demais representavam, da mesma maneira, trechos históricos daquela cultura. Os convidados estavam vestidos à rigor, elegantes e educados. Do outro canto da mesa, um senhor de barba e cabelos grisalhos levantou-se, vestia-se de forma impecável.

— Boa noite, Sr. Lefevre, é um prazer tê-lo aqui conosco — disse ele exibindo um sorriso amigável.

— Boa noite, senhoras, senhores, Sr. Laurent. Perdoem-me pelo atraso.

— Está tudo bem, rapaz, venha, sente-se à mesa, logo seremos servidos — respondeu ele indicando uma cadeira vazia, bem próxima à sua.

Antes de me deslocar, fui abordado por um serviçal que me ofereceu uma taça de vinho, eu a peguei e avancei até meu lugar. Não demorou para que a falação e as gargalhadas voltassem a ecoar pelo ambiente.

Conforme avançava, eu notava os olhares de cantos caindo sobre mim, não que eu me incomodasse, afinal, eu era novo ali, não conhecia ninguém e a curiosidade era um dom de todos, mas logo fui surpreendido, a menos de um metro, ao lado da minha cadeira, um rosto familiar se destacou. Pele alva, cabelo escuros como a noite, lábios carnudos e vermelhos, olhos grandes, lindos e de um tom castanho e cativante. Vestia um traje claro, todo branco com detalhes em dourado. Aproximei-me, exibi um sorriso encabulado, que foi retribuído, ela então pousou a mão sobre a cadeira.

— Sente-se, Sr. Lefevre — disse Elizabeth. Sentei-me.

Um calafrio curioso corria de forma descontrolada sobre minha espinha, meus sentidos se aguçaram e o cheiro de Elizabeth me extasiava. Eu me mantive em silêncio, apenas observando e absorvendo. Não demorou para que a comida começasse a ser servida. As bandejas possuíam um brilho levemente fosco, refletindo tudo de uma forma distorcida o bastante para não se distinguir uma imagem sequer, fiquei pensando que tipo de material seria aquele, prata talvez? Os criados iam e vinham, trazendo cada vez mais diversidade de pratos, a maioria exótico, ao menos para mim.

Uma das bandejas foi descansada à minha frente, nela um montante de filé mal passados exibiam uma beleza aos olhos de quem apreciava, todo organizado com legumes e vegetais em volta, provavelmente estratégia do chefe para acrescentar alguns sabores a carne, o cheiro suculento instigava todo e qualquer estômago e por mais que não estivesse faminto, daria lugar a gula, sem dúvidas.

— Como foi a viagem? — Perguntou Sr. Laurent. Eu o fitei, sabendo que a pergunta havia sido diretamente à mim. Os convidados baixaram a voz, parecendo curiosos e ao mesmo tempo por respeito ao anfitrião. Elizabeth encarou-me, com brilho e curiosidade nos olhos.

— Foi maravilhosa, Sr. Laurent, tivemos alguns contratempos devido ao tempo e as festas que se sucedem nas cidades baixas, mas conseguimos chegar bem.

— Claro, isto é o que importa — disse ele.

— Os cidadãos são muito animados nesta época do ano — comentou Elizabeth, deslocando o olhar para todos os convidados. — Eles comemoram o período fértil das terras e também o lucro. Como estas terras sempre foram da nossa família e apesar de meu pai não fazer questão, eles oferecem-nos, todos os anos, parte dos seu lucros como agradecimento pela terra e pela proteção que minha família sempre forneceu.

— Ouvi dizer que haviam muitas pilhagens à algumas gerações passadas nesta região — argumentou um dos convidados, um senhor robusto e com um bigode longo, grisalho e esquisito.

— É verdade. — Respondeu Sr. Laurent. — A algumas gerações, muito piratas e mercenários costumavam atracar nas costas dessa região e pilhavam as cidades no meio da noite. Meus antepassados resolveram formar uma pequena milícia, usando de sua fortuna para bancá-los. Essa milícia se estabeleceu e desde então permanece em nossas terras defendendo os povos. Só não negamos o dinheiro que nos é oferecido, pois é com ele que mantemos os soldados. — Sr. Laurent pareceu orgulhoso das palavras que proferia, certamente estava, afinal, sua família era bem afortunada, amada pelo seu povo e benfeitora.

Um silêncio se fez e logo a falação retornou, o jantar seguiu tranquilo. A chuva do lado de fora engrossou a ponto de tornar-se violenta, e pelos vitrais podíamos notar os relâmpagos que explodiam do lado de fora. Animei-me enquanto deliciava as carnes suculentas, as saladas fartas e os pratos que eu nem sequer fazia ideia do que eram, mas meu paladar agradecia. Elizabeth, vez ou outra fazia comentários ao meu ouvido, normalmente falando sobre um dos convidados.

— Soube que está para se tornar mestre na universidade — ela comentou, puxando levemente a cadeira para perto de mim.

— Sim, no próximo semestre, provavelmente.

— Isto é muito bom, você sempre se destacou, é mais do que merecido. Agora diga-me. Com tanto sucesso em seu caminho — ela encarou-me, senti, por baixo da mesa, sua mão tocando a superfície da minha coxa, uma excitação repentina pôs meu coração à galopes — há uma Sra. Lefevre para apoiá-lo?

Eu engoli seco a resposta. Observei rapidamente todos os convidados, até Sr. Laurent, todos estavam distraídos. Encarei Elizabeth, que exibia um sorriso falso e descontraído. Sua mão subiu um pouco mais, parando próximo da minha virilha. Apertei os dedos dos pés e pressionei as costas contra o apoio da cadeira.

— No momento, não — respondi seco e atordoado.

Elizabeth inclinou-se em minha direção, mais próximo ao meu ouvido. Senti seu perfume afetar-me como um veneno letal, meu peito doía com as pancadas que meu coração dava contra o tórax, em meio à excitação, dúvidas, ansiedade e sensações que eu não sabia descrever. Senti sua mão apalpando entre minhas pernas e os lábios de Elizabeth tocando meu pescoço, jogando-me em um êxtase profundo, meus olhos pesaram e ela apertou-me um pouco mais.

Por um momento cai no abismo de minha imaginação, senti meu corpo todo em contato com o dela, a paixão aflorando, um ritual sexual animalesco e intenso, o toque da sua pele contra a minha, sua unhas marcando minhas costas, o gozo do momento, quando a realidade puxou-me de volta.

— É hora da sobremesa — anunciou a voz de Sr. Laurent após bater levemente a colher contra a taça. Abri os olhos e notei que as velas haviam se apagado, apenas uma tênue luz dos relâmpagos iluminavam o ambiente. Flagrei silhuetas distorcidas em todas as direções, um silêncio esquisito, e tudo logo se rompeu em gemidos e gritos.

Segundos, tudo ocorreu em breves segundos e quando me dei conta, fitei Elizabeth.

— Mas… — Tentei entender o que estava acontecendo, mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, senti ela puxando meu cabelo para trás e inclinando minha cabeça, então minha pele rasgou, uma pressão sinistra pesou em meu pescoço e senti meu sangue escorrer sobre meu peito e minhas costas. Ela empurrou-me para trás, caindo sobre mim, sugando meu medo, minha lucidez e minha vida.

Fim (?)