O futuro, relações humanas e IA's — Observando simulacros de Blade Runner a Detroit Become Human
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Diante do maravilhoso mundo dessas ferramentas generativas, você já se perguntou "como você se sente", sobre o que elas fazem, sobre o que elas são e sobre o que elas te proporcionam? Talvez você interaja com as máquinas sabendo que são apenas máquinas, mas não é incomum que as pessoas também sintam uma relação mais profunda, uma espécie de hiperrealidade, onde o envolvimento emocional é tão grande que a pessoa apenas ignora o quão artificial é a ferramenta. E é isso que vamos explorar um pouco, essa relação dicotômica entre humanos e máquinas, que já deu muito pano pra manga, e hoje, diante de uma interação tão grande com "máquinas que aprendem", parece que a Inteligência Artificial da ficção está à caminho.
Baudrillard, um sociólogo francês da pesada, já falava disso em 1981 no livro Simulacros e Simulação, que já foi suporte para muita reflexão e também obras que miravam o futurismo e cyberpunk. Essa ideia da hiperrealidade é aprofundada neste livro, mas agora, para nós, ela serve apenas para estabelecer esse pensamento. Humana e máquina.

Essa treta não é nova, Mary Shelley deu vida à criatura de Frankenstein ainda no século XIX e já colocava essa provocação sobre a interferência de um ser artificial na humanidade. Esse Monstro também simboliza as fronteiras incertas entre o homem e a máquina, a vida e a morte, e foi um presságio do que muita gente tem medo hoje: um futuro tecnológico que coloca em xeque a nossa própria compreensão do que significa ser humano.
Se você não conhece bem a história de Frankenstein, ele era um médico ambicioso que decidiu criar uma vida a partir de partes de cadáveres e metal, o tal do Monstro. Essa aberração – no livro realmente ele é colocado como algo grotesco – acaba saindo e vagando pelo mundo refletindo sobre algumas questões que são fundamentais pra nós, como o motivo da sua existência. Porém, com o tempo, ele vai criando uma compreensão de mundo e o que passa a atormentar é ele ser rejeitado por seu criador… familiar?
A repulsa que Frankenstein tem pela criatura não é só pela aparência, mas também pelo monstro personificar uma espécie deslocada, desajustada.
"O mundo era para mim um segredo que eu desejava decifrar. Entre as mais antigas sensações de que posso me lembrar estão a curiosidade, a pesquisa dedicada para aprender as leis ocultas da natureza e uma felicidade equivalente ao júbilo quando elas se revelam a mim." - Frankenstein, Mary Shelly.
Mais de um século depois, Ridley Scott joga no mundo Blade Runner (1982). Agora a parada é o futuro distópico. O filme moldou a estética cyberpunk no cinema com arranha-céus que tocam as nuvens, ruas marcadas por violência, opressão e desigualdade – não tão distópico, né – e a figura do monstro que não mudou tanto assim. No filme existem androides semelhantes ao humanos chamados Replicantes. Eles são criações artificiais da Tyrell Corporation, feitos pra trabalhos braçais principalmente e com data de validade; eles bugam e morrem depois de quatro anos. A história gira em torno de uma caçada de um líder Replicante chamado Roy Batty, e que possui incontáveis semelhanças com o Monstro de Frankenstein, principalmente o desejo pela vida e o sentimento de rejeição.
"Uma experiência e tanto viver com medo, não é? Isso é o que é ser um escravo... Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Ataque de navios em chamas no flanco de Orion. Eu assisti Armas de Césio brilharem na escuridão no Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos serão perdidos no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer." - Roy, Blade Runner (1982).

Então, em 2017, com Blade Runner 2049, pudemos ver o uso dos Replicantes em outras situações, como da personagem Mariette, uma doxie, pessoal treinada pra usar meios como o sexo para cumprir ordens. A existência de Replicantes com um propósito como esse se desloca um pouco do Monstro e o grotesco e se aproxima da nossa reflexão, pois androides assim poderiam facilmente se infiltrar e passar despercebidos no cotidiano, e também nos afetar diretamente, mesmo quando conscientes que são androides. Essa relação se aprofunda cada vez mais e definitivamente é um ápice se comparado às influências que já temos na nossa cultura com simples chats de conversa, há pessoas usando esses chats como reais amizades, terapeutas, como uma figura real e tão influente quanto uma pessoa real, aí a hiperrealidade entra rompendo essa camada desfigurando os poucos aspectos sensoriais que temos para entender que é uma máquina e não uma pessoa de verdade, e se formata principalmente a partir da nossa dependência emocional.
Nota: Eu sei, eu sei. Estou falando sobre "real" e "verdade", existem vários argumentos sobre o que são esses conceitos de fato, mas para nós basta entendermos os dois termos como o mundo concreto com o qual interagimos.Detroit: Become Human (2018), com pouco mais de cinco anos, é um jogo incrível que coloca em discussão exatamente o aprofundamento dessas relações, mas pega pesado quando deixa o jogador na posição do androide. O se faz sobre uma narrativa futurista onde IAs, os androides ganham autoconsciência e começam a se questionar sobre sua existência e os limites impostos por seus criadores humanos. Ao desenvolver, ao seu modo pela emulação, sentimentos como medo, luto e compaixão, eles refletem sobre a própria humanidade, a que existe neles, e sobre a sua posição dentro da sociedade, como seres também com direitos, indo ainda mais profundo nas reflexões sobre o “ser” e também o “estar”.

Em contraponto, também é possível ver como as pessoas desse universo se relacionam em extremos com esses androides, colocando aí alguns questionamentos que reforçam o impacto deles sobre as pessoas, o impacto real, a forma de agir, pensar, a maneira de ser.
"Olho por olho, e o mundo ficará cego. Não vamos punir um crime com outro crime." - Marcus, Detroit: Become Human
Seja o Monstro de Frankenstein, Roy Batty em Blade Runner ou os androides de Detroit, há um fio condutor que conecta essas histórias: o questionamento daquilo que nos faz humanos. Quando criamos seres à nossa imagem – não me refiro apenas a estética, mas máquinas que falam como nós, fazem coisas como nós, etc. –, parece que os moldamos com nossas próprias dúvidas, medos e desejos. Esses seres artificiais, tão cheios de razão quanto potencial de emular sentimentos, refletem o que há de mais profundo em nós. Não são apenas máquinas, mas espelhos da nossa própria busca incessante por sentido e redenção. Talvez, nem a tecnologia ou o futuro distópico assuste tanto quanto a possibilidade de que essas criaturas sejam mais humanas do que nós.