deadpoolwolverineetiktok
Experimental | 39'O processo criativo é algo realmente curioso. Ele surge em momentos estranhos e em situações estranhas, ou melhor, ele pode surgir, e ou melhor, suas primeiras faíscas podem surgir. Eu não sou usuário assíduo do TikTok, mas confesso que desde que descobri o festival de cinema vertical da plataforma Cannes, passei a prestar mais atenção nos cineastas amadores e profissionais que criam filmes no formato 9:16.
Porém, foi ao ser "atropelado" pelo algoritmo depois de conferir alguns spoilers sobre Deadpool & Wolverine (2024), de Shawn Levy, ainda na sua primeira semana nos cinemas, que comecei a refletir sobre o fazer cinematográfico e a materialidade do TikTok. Minhas pesquisas foram de buscar spoilers, para a tentativa de encontrar fragmentos maiores e pirateados do filme. No meio disso, me deparei com formatos curiosos de compartilhamento e consumo de incontáveis títulos na plataforma.
Antes dessa experiência, já vinha explorando um submundo digital onde "arqueólogos" compartilhavam cópias raras de filmes por meio de redes rizomáticas de hiperlinks no Google Drive, OneDrive, Dropbox e outros. O que tem de mais nesse movimento pirata? Deixando os questionamentos da legalidade de lado, a galera—principalmente do Twitter e Bsky—estava construindo, não intencionalmente, um catálogo de preservação digital, uma proposta semelhante ao Torrent, porém, ignorando a volatilidade e a complexidade existente ao lidar com P2P (peer to peer), e simplesmente permitindo o acesso aos arquivos através de um único link e diretamente. Mais do que isso, a possibilidade de assistir aos filmes em qualquer dispositivo apenas pelo navegador.
Fragmentos, remix e um novo modo de assistir cinema?
É óbvio que armazenar diversos arquivos de filmes exige um pacote caríssimo na nuvem, exceto que, essas mídias estavam armazenadas em incontáveis contas gratuitas. Um esforço imenso que só poderia ter vindo de cinéfilos famintos e insatisfeitos. Mas o ponto é que, essa necessidade acabou criando uma nova forma de distribuição e consumo, e ao observar o TikTok, me deparei com outras formas também, que correspondem melhor às novas gerações. Alguns perfis compartilhavam trechos considerados principais de filmes e divididos em 10 ou 20 vídeos. Outros tinham vídeos que resumiam filmes em 60 segundos, e outros até mesmo comprimiam e aceleravam obras inteiras para serem assistidos na velocidade reduzida, como o exemplo de A Viagem de Chihiro (2001) publicada pelo perfil @telona.colorida (acesso em 12 Out 2024).
Enquanto voltava a pesquisar sobre Deadpool&Wolverine, notei também o quão interessantes eram as mixagens feitas com o filme—recortes específicos enfatizados por trilhas sonoras aplicadas diretamente no TikTok e também efeitos que davam outra dinâmica pra essas cenas, deixando elas mais impactantes ou dramáticas. Isso não é uma prática nova, de fato, a remixagem é algo analógico e que ganhou poder com o digital, principalmente de produções sonoras. No vídeo já se tinha desde found footages à produções mainstream explorando isso, porém, agora está ali, líquida, nas mãos de qualquer pessoa que consiga acessar o aplicativo.
Construindo a partir de fragmentos
Passei cerca de 4 horas scrollando o feed, me deparando com diversos trechos do filme gravados direto de dentro de salas de cinema por espectadores e também de diferentes trailers. Nas primeiras horas eu estava um pouco sem rumo, apenas explorando, em seguida fiz cerca de 2 horas de gravação da tela do computador.
Com a captura de tela pronta, de uma maneira bem simples criei vários recortes entre os vídeos que gravei e criei uma espécie de "linha do tempo", arranjando cada fragmento em uma lógica narrativa que me parecia interessante. O vídeo final ficou com aproximadamente 15 minutos.
A experiência que o TikTok proporciona—isso é óbvio, mas eu apenas não me liguei—é única no dispositivo móvel. Então, excluí tudo. Voltei para o TikTok, agora no celular, e partindo das mesmas pesquisas, comecei a gravar a tela. O processo se repetiu. Mas dessa vez, até mesmo a experiência de montagem foi diferente.
A terceira montagem foi um divisor de águas: criei o arquivo no Adobe Premiere Pro. O software não só facilitou a edição, como também a organização da obra em si. No Premiere, pude criar uma organização baseada em cores para os trechos que eu recortava da gravação integral, facilitando a criação de uma "ordem lógica" dos eventos.
Imagem da linha do tempo no Adobe Premiere Pro
O TikTok como máquina de narrativas alternativas?
De um modo curioso, se observarmos agora, de fora, o TikTok acaba se tornando um calabouço de fragmentos de mídia, um repositório alimentado—intencionalmente, mas não consciente desse ato—por usuários que estão expressando ideias, momentos da sua vida, ou apenas poluindo um pouco mais a rede. É claro que o TikTok modificou profundamente a maneira como consumimos, interagimos e criamos mídia, mas há mutações dentro dessa cultura que ainda parecem pouco exploradas ou pensadas, talvez pouco experimentadas. É preciso remover as tripas para explorar novos limites de experimentações, e atos criativos—ou não, tome como quiser, são caminhos para esse vislumbre.
Desse repositório, tudo o que eu fiz foi curar materiais e remixar de acordo com a minha vontade, a minha lógica. Porém, esse "fazer coletivo" não me permite dizer que a obra é minha, pois cada usuário teve a sua parte. Eu apenas organizei, fui o montador e responsável por esse hipercorte. E a partir disso também comecei a refletir:
- A possibilidade de "assistir" um filme antes de vê-lo no cinema cria uma nova experiência cinematográfica? Esse "cinema lixo", hipercorte ou footage tem potencial para ser explorado em diferentes contextos? Eu li há algum tempo sobre paracinema em um texto sobre filmes B, vou deixar esse comentário aqui para voltar nisso no futuro, pode ser frutífero.
- Essa ideia do "fazer coletivo", a possibilidade de qualquer pessoa ter o poder de reconfigurar narrativas, e também essa criação não intencional de um repositório me lembra a inteligência coletiva de Lévy, e o conceito de remix de Lessig. Mas tenho certeza que, ao olhar para estudos das novas mídias, haverá algo que possa ajudar a estabelecer melhor essa reflexão.
- O TikTok não é apenas uma base de dados, mas também uma máquina de narrativas alternativas? Se pararmos para pensar, é um repositório global e gratuito—até os limites dos direitos autorais—, e esse ato de remixar esse conteúdo seria o underground do underground, possivelmente a maior resistência às engrenagens operatórias do cinema dominante, além da pirataria. Não quero dizer que vá fazer alguma mudança significativa no mercado, mas definitivamente é uma mudança significativa nas subculturas.
- Seria ingenuidade dizer que essa remixagem, e tantas outras que são possíveis, possam configurar uma estética singular? Talvez uma estética do fragmento, onde a imperfeição é essencial para a experiência, considerando as diferentes qualidades de áudio e vídeo, câmeras tremidas, legendas e textos sobrepostos? Por mais que não exista alguém colando esses recortes, montando esses filmes, apenas do ponto de vista de como experienciamos esses trechos de forma aleatória e criamos em nossas mentes uma ordem lógica, poderia o TikTok estar sendo, sem querer, o responsável por um novo cinema nativo da rede?
Seja como for, vejo nessa experiência um potencial que se destaca, e é muito semelhante ao machinima: o poder que uma pessoa, com o menor conhecimento artístico que seja, tem de agir sobre a mídia, atribuir novos significados e sentidos, e criar a sua expressão independente.
O "fazer coletivo", uma boa expressão para o ato de hackear o cinema. Talvez "hipercorte" possa também representar bem esse monstro que se revela ao final da montagem, a realidade de quem cola os fragmentos. Fico imaginando quantas versões alternativas e vertiginosas de Deadpool & Wolverine poderíamos ter se cada pessoa decidisse montar sua versão. Isso é o que eu chamo de multiverso.