dream grama
Experimental | 1'Uma garota conta para sua amiga sobre um recente sonho estranho do qual ela ainda não se recuperou e tem a sensação de que ainda está sonhando.
Projeto desenvolvido na disciplina de Poesia no Cinema no mestrado de Cinema e Artes do Vídeo da Universidade Estadual do Paraná, inspirado pelas obras e estudos de Maya Deren e reflexões sobre o delírio e descontinuidade do espaço e do tempo.
Roteiro, Direção e Montagem: Uoshi
Dir. de Arte e Fotografia:
Castro Pizzano
Elenco e Figurino: Sali Cimi
Apoio: Masdon +
CasaTreze Studio
Sobre o processo criativo
Justificativa da criação entregue junto ao vídeo na disciplina.Particularmente, antes de me propor (pois mais do que um projeto para disciplina, esse material também é um desafio pessoal) a criação do projeto “Dream Grama”, buscar como inspiração e referências os trabalhos de Maya Deren parecia assustador e impossível. Meu primeiro contato com Deren me permitiu compreender algo que eu sabia que existia no cinema, mas estava sem uma forma, sem um nome, sem uma estrutura analítica. Refletindo sobre isso, entendi que o maior desafio está em nos desprendermos do que é convencional, das estruturas narrativas tradicionais, as quais, inclusive, estamos tão enraizados que e o primeiro ato ao observar uma obra é buscar por significados e leituras, ao invés da pura experiência do observar.
Durante a estruturação do roteiro, me vi apagando e reescrevendo linhas e linhas com diálogos, descrições de imagens e frustrado por sempre acabar com páginas de discursos racionais, sobretudo, que não expressavam minimamente o que eu buscava com esse projeto. Pensar no realismo, como Deren, exigia não negá-lo, mas usar o que estava sendo registrado de forma a construir a partir de uma desconstrução, usar a imagem para que seja mais do que uma imagem, um registro, mas uma fragmentação da lógica frente a sobreposição da subjetividade - e aqui o subjetivo é a experiência desse caos ilógico.
Não descarto a narrativa, mas ao contrário de quando se estuda, ao criar baseado em, se constróem novas paredes que precisam ser derrubadas com a auto reflexão. Em Tarkovski, foi onde encontrei um caminho para primeiro entender a relação da realidade e a construção a partir dela, e não me refiro ao que de fato é o real ou sua estética, mas no sentido de que “[...] a partir da ‘observação direta da vida’ e de seus fenômenos [...] uma realidade na qual a fronteira entre subjetividade e mundo objetivo se dissolve, gerando uma (intro)visão.” (Vasconcelos, 2020, p. 161), e a formatação desse pensamento é o que eu assumi como um ponto de partida.
Pensar no cinema vertical proporciona uma emocionante e excitante maneira de desaprender a observar, de forma que o olhar curioso não seja contido, apenas domado para que os sentidos e o corpo respondam a imagem de maneira mais instintiva e emocionalmente direta. “Tal proposta cinematográfica subentende a inclusão do espectador na construção do sentido do filme.” (Ribeiro, 2017, p. 303), e mais do que criador, ao me colocar como espectador foi onde senti a dificuldade em articular criativamente a partir da perspectiva de Deren, onde tão incisiva ela argumente e elabora narrativas não lineares, deslocamentos e desconexões tão conscientes, que tornam lúcida essa separação entre a narrativa dramática e o mergulho poético.
Vejo a importância desse diálogo entre realismo e a poesia, pois é fácil nesse caminho nos deixarmos levar pelo abstrato, permeando então outros significados e valores. Encontrei na proposta de Deren uma aderência ao realismo pela sensação de proximidade que esse tem com o espectador, que tem menos desdém pela imagem do que quando ela apresenta algo não familiar, fantasioso. Estar na presença de uma imagem que te aproxima pelas particularidades da personagem e/ou mise-en-scène, é estar a mercê do imprevisível, da possibilidade de habitarmos o vale da estranheza e beirar ao bizarro ou sermos jogados em um estado ordinário, mas também explora nossa sensibilidade ao que é visto, e portanto, quando a imagem toma um novo rumo, se desprendendo da narrativa, nós estamos juntos à deriva desse processo sensorial.
Há uma fala de Deren no “Poetry and the Film: A Symposium”, que ocorreu em outubro de 1953, transcrito no Film Culture Reader (2000), p. 174, editado por P. Adams Sitney, e que me serve como alicerce ao pensar sobre a visão da autora sobre essa construção fílmica dicotômica:
A poem, to my mind, creates visible or auditory forms for something that is invisible, which is the feeling, or the emotion, or the metaphysical content of the movement. Now it also may include action, but its attack is what I would call the “vertical“ attack, and this may be a little bit clearer if you will contrast it to what I would call the “horizontal“ attack of drama, which is concerned with the development, let’s say, within a very small situation from feeling to feeling.
Assistindo algumas obras de Deren, notei como a sagacidade na montagem é importante, mas não tanto quanto a visão criativa. Aqui eu gostaria de pontuar algumas observações práticas: durante meu processo de criação, entendi que Deren tinha capricho por compreender o que estava criando, do ponto de vista processual, justamente para dominar a imagem. Quando, no meu processo, a captação veio através de outras mãos, a falta de entendimento da tecnologia e controle sobre esse médium foi um potencializador de frustração e forçou a reorganização do que eu vislumbrava para adequar ao que foi captado. Deren ter o domínio sobre o médium, possivelmente foi um fator importante para a sua percepção narrativa e além, no processo de montagem. Tomo isso como uma nota de experiência, uma vez que foi de suas obras que me inspirei.
Quando iniciei os primeiros rascunhos de Dream Grama, tinha certo de que - ao contrário de incontáveis projetos inspirados por Deren que encontrei no YouTube e valorizavam a estética da película, a ausência do som e quase reproduções das suas imagens - eu queria fazer o uso do som, não de um score, mas ambiência e voz. Como a premissa do projeto era um diálogo onde uma personagem narraria um sonho para outra, ao estruturar a ideia acabei dividindo ela em duas partes - que se somariam - e desenhei um esquema de narrativa convencional para me guia no meu processo e que cada vez que eu parecesse estar navegando por ela, pudesse me afastar. A prática pode parecer meio absurda de início, mas o exercício de se desprender do comum é difícil, e por mais que não pareça, quando se está experimentando uma tecnologia, uma forma de produção de arte e existe uma régua - mesmo que apenas conceitual, é preciso estabelecer alguns limites para que não se faça muito ou pouco.
O primeiro esquema se baseou em três quadrados, no qual cada um representava a estrutura narrativa sólida: início, meio e fim. Dentro de cada quadro havia ainda: exposição (1.1), valores (1.1), evento (2.2), ação (2.3), crise (2.4), reflexão (2.3), clímax (2.5), consequências (3.3) e resultado (3.1). Dos números entre parênteses, o primeiro se refere ao quadrado, a etapa da estrutura, e o segundo a escala crescente dramática. O segundo esquema era mais simples, três linhas saíam do meio do quadrado 1, subindo e descendo em cruzamentos como ondas, até o quadrado 3, representando o tempo, espaço e objeto, o formato de história que eu buscava contar.
O primeiro esquema foi desenhado para manter o roteiro e o storyboard afastados, enquanto o segundo foi uma elaboração visual do meu entendimento quanto a teoria do cinema vertical e uma análise a partir de reflexões sobre os filmes At Land (1944), Meshes of Afternoon (1943) e The Witche’s Cradle (1943).
Na tentativa de experimentar, tal como o cinema de Deren, mas buscando também explorar outras ideias que poderiam ser interessantes para contato, encontrei na narrativa paramétrica de Bordwell, a possibilidade de empregar o som e ao mesmo tempo que contrapor a imagem, também tornar ele uma ferramenta da mesma. Para Bordwell, nesse tipo de narrativa estão filmes “in which syuzhet patterning and stylistic patterning are out of sync [...]” (Bordwell, 2007, p. 14), ou seja, suas perspectivas (como será exemplificado no próximo parágrafo) possuem também valores individuais.
Dream Grama então se faz como um curta-metragem experimental, e que também se pauta na ideia de daydream, ao resgatar em seus extremos a elaboração de uma segmento infinito e surreal. A partir das inspirações e base teórica já citadas, a experiência de distorcer imagens e sons, trabalhando sobre a narrativa clássica e sua desconstrução, acabou por dar ao projeto uma forma consciente que pode ser observada de três perspectivas, juntas ou individualmente:
- O filme como imagem se faz a partir de cenas curtas - inicialmente havia a intenção da preservação de planos longos, mas foram construídas assim devido às limitações de ferramentas, deslocamento e espaço -, que através de cortes, mostram a personagem principal (Garota) contando sobre um sonho para outra personagem que permanece a maior parte do tempo fora de quadro (chama Duplo). Essas cenas são baseadas no movimento da caneca de café e das mãos da Garota, que a cada corte seguido desses movimentos, a situa em um espaço diferente. A descontinuidade espacial existe no filme para o primeiro contato de estranheza com o espectador, a experiência da desconexão.
- O som ambiente é preservado do início ao fim, foi uma escolha de ancoragem contemplativa para a repetição sobre a experiência fílmica.
- A história narrada, tal como apoiada à penúltima cena, cria a terceira camada e se faz pela ideia do daydream, carregando ambiguidade e uma tentativa de representar a quebra racional narrativa, a experiência sensorial e situar o espectador dentro de um espaço concreto, mas imaginativo/impossível.
Entendo que muito do esforço empregado para a criação desse projeto, após reflexão sobre as teorias abordadas, mesmo que brevemente neste texto, tiveram resultados que não corresponderam à ideia original. Mas ao mesmo tempo, me permitiu também pensar sobre todas as “paredes” criadas pela forma como consumimos e criamos arte na contemporaneidade. Apesar da poesia ainda ser sustentada pela herança desses pensamentos, existem diversos atravessamentos que ocorreram para mim como potenciais criativos e ao mesmo tempo destrutivos, mas também acredito que essa é a base da experiência e descoberta, tal como Tarkovski e Deren tiveram que caminhar, experimentar, aprender, elaborar, se arriscar, pensar poeticamente é um exercício único, assim como traduzir esse pensamento em imagem, som, ou simplesmente tentar dar espaço para que se faça - como Deren pôs - visível algo que é invisível através de uma sensibilidade que dispensa ser racionalizada, mas profundamente sentida.
Referências:
BORDWELL, D. Poetics of Cinema. Nova York: Routledge, 2007.
VASCONCELOS, Beatriz Avila. Um modo de relacionamento com a realidade: Noções de poesia de Andrei Tarkovski. Aniki, AIM – Associação de Investigadores da Imagemem Movimento, v. 7, n. 2, p. 152-172, 2020. Disponível em: <https://aim.org.pt/ojs/index.php/revista/article/view/649>. Acesso em: 26 jul. 2024.
RIBEIRO, Ana Costa. Corpo, memória, paisagem: o Cinema Vertical de Maya Deren. ln Atas do VII Encontro Anual da AIM, editado por Ana Baiona de Oliveira, Catarina Maia e Madalena Oliveira, 297-307. 2017. Lisboa: AIM. ISBN 978-989-98215-8-3.
SITNEY, A. P. Film Culture Reader. Nova York: Cooper Square Press, 2000. ISBN 978-0-8154-11 01-7.